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segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

A farsa lavada

A chuva que bateu na janela pela manhã despertou quem dormia ali perto, correndo o risco de se molhar. As densas gotas d’água caíam no rosto ainda dormente para alertar sobre o que viria em seguida, como se a água fosse capaz de prever mudanças e ainda descrevê-las com a finalidade de possibilitar maior precaução.

O rosto molhado e atônito dirigiu-se ao espelho do lavabo e constatou que a profecia da chuva já havia se iniciado: não se reconhecia. Não pela fisionomia que lhe parecia a mesma desde a época em que ainda não sabia andar ou mesmo se expressar sem ajuda, mas pelo que ele representava por trás daqueles traços palpáveis e disformes.

Não era o mesmo rosto, por mais que apresentasse alguma semelhança. As olheiras fundas de cansaço acumulado e a sobrancelha perfeitamente desenhada numa tentativa de compensação. Agora no espelho não via nenhuma razão para amenizar algo que a sua própria realidade escancarava em sua face. Dezenas de minutos se passaram enquanto os olhos se viam por meio de um reflexo querendo entender porque tantos outros minutos foram gastos na produção desta farsa.

A feição amena provinha do esforço ditado por um motivo já desaparecido e, com ele, até mesmo sua essência transposta por características mais aceitáveis havia sumido. O rosto não se via e nem reconhecia o que era visto, por pouco não se apresentava como um estranho que teve a ‘impressão de já conhecer o outro de algum lugar’.

Sua imagem já dizia nada a seu respeito e o que ela mostrava o fazia esquecer de quem realmente era; sua imagem o denegria da maneira mais sutil e, um tanto pior, com o seu consentimento. O desespero tomou conta do rosto anônimo e logo ele se pôs em baixo da corrente de água fria despejada pela torneira complacente. A água da chuva o havia alertado, por isso talvez esperasse algum milagre da água encanada, mas a imagem estranha continuava inerte, estampando seu conteúdo incógnito.

Aquela impureza provavelmente era demasiado concentrada para ser eliminada com tão pouco. Tentava, então, o sabonete, a esponja, o sabão em pó, o detergente e, em sua última tentativa, pensou em recorrer à cândida. Antes que a pusesse em sua pele, já sem qualquer esperança de obter um resultado positivo, lembrou que a limpeza de seus pertences domésticos e até mesmo da água que bebia poderia ser feita por efervescência.

Levou uma panela de água ao fogo e, quando as bolhas subiram declarando seu estado máximo de pureza, o rosto invejoso mergulhou-se nela até que ele não pudesse mais sentir o seu processo de re-estruturação por desintegração. Sem sentidos caiu no chão da cozinha e, até onde pôde, esboçou um sorriso. Agora não seria mais reconhecido pelo que não sabia o que era: em carne viva sentia-se mais próximo do que de fato era. Satisfeito, só esperava que ainda estivesse chovendo para ir, de corpo inteiro, agradecer.

Um comentário:

Milla disse...

"processo de re-estruturação por desintegração"
Caramba desfazer pra fazer novo...
Gostei da forma drástica que retratou isso.

=*