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domingo, 29 de junho de 2008

26ª Edição.

Na base do improvável improviso.
1, 2, 3.
Vai.

Dos pés a cabeça



No primeiro dia do ano acordou com tudo igual ao seu redor, as paredes desbotadas, a rachadura do teto e na cama a mesma mulher há quatro anos. Tudo morno, cinza e quase morto.

A parte mais animada do corpo eram os pés por causa das frieiras, que agora pareciam ter mais vida do que ele mesmo. Coçavam sem parar e despertavam o resto do corpo. Guerreiras.

Elas venceram. Levantou-se e foi ver a corrida na Paulista, não tinha o que fazer e nem pressa com nada. Caminhou e elas se acalmaram com o suor e a umidade, mas ele não.

Lá todos corriam para vencer e chegar a algum lugar. Ele era um intruso. Não corria e queria dormir. Pensou em voltar, mas essa hipótese causou uma vontade ridícula de correr.

As frieiras agora dominavam os pés, que cederam com animosidade para correr, mas ele não permitiu, apenas andou um pouco mais rápido. Não tinha para onde ir e nem queria voltar.

Foi caminhando em um ritmo mais acelerado e ficando cada vez mais distante das paredes do apartamento e da rachadura no teto. Longe da sensação de toda manhã. Acordar e sentir o peso de ser o que os outros não esperavam. Mentiu por tanto tempo que até acreditou que queria ser alguém na vida de alguém.

Ele não queria a estranha que acordava ao seu lado há quatro anos. Nunca quis nada na vida, nem mesmo a vida. Estava ali porque nasceu e só. Não teve opção e se talvez tivesse escolheria a mais cômoda.

Percebeu que estava correndo. Parou. Olhou ao redor e se deu conta que estava cansado. Entrou em uma farmácia e saiu com uma sacolinha nas mãos.

Voltou para casa. A mulher estava na frente da televisão bocejando e disse – “Fiz café”, ele balançou a cabeça e foi para o quarto. Tirou o sapato e olhou para eles e depois elas.

Malditas. Abriu a sacola, pegou a pomada e leu a bula “Indicado para pé de atleta e infecções cutâneas”. Não podia ter pés que o fizessem um atleta e uma louca vontade de correr para longe de tudo o que era cômodo e confortável.

Os pés se conformaram, assim como ele. Nunca mais esboçaram nenhum ímpeto aventureiro de sair por aí. Só ficou a lembrança de como quase perdeu o nada que era sua vida.



Imagem: Da cabeça aos pés - Por Paula M. Leite do Canto - 1999

Final interrompido

A casa parecia ter mudado de lugar, desde a manhã até a noite daquele dia, um furação tinha passado e levado as lembranças. Quando voltei, senti como se não tivesse saído, parecia que tudo não tinha passado de um sonho ruim, com palavras amargas. Olhei ao redor e tudo parecia ter mudado tanto, mesmo que as coisas estivessem aparentemente no mesmo lugar, faltaria você para me perguntar do dia e me tornar a pessoa mais importante nas histórias que escrevia e nas que sonhava. Mesmo quando ia, imaginava os seus olhos me observando caminhar, até virar a rua e me perder de vista, seguia com a cabeça meio de lado sorrindo.

Meus pensamentos interrompidos pela sua presença inesperada, o seu rosto cegando os meus olhos, quase não consigo lembrar como me senti assim pela última vez, você é o meu anjo disfarçado de humano. Tenta mentir, me enganar, mudar as peças de lugar, eu sei que meu coração é mais rápido que o seu e nesse ritmo o longo filme está perto do fim. Juntos, fizemos todas as coisas que duvidamos existir longe dos roteiristas apaixonados. Fiquei acordada por você, não queria perder o seu respirar calmo de quando a noite cai, te entreguei meu coração em salto sem conhecer o que tinha do outro lado, só para não perder nada.

Fiquei ali, tentando não tremer, me sentindo viva, olhando a chave dos meus dias coloridos, as minhas surpresas, os olhos ainda não tinham se encontrado e tudo continuava fora do lugar. Respirava mais feliz, porque meu amante era antes de tudo, um amigo. Sabíamos que tinha uma coisa maior que nos prendia desde o começo, tivemos certeza quando cada fase se tornou cada vez mais inexplicável, nunca pensei em conformismo estando ao seu lado, sempre quis estar, porque nunca foi mesmo muito confortável, ainda que livre e completa só me sentisse nos seus braços, seu abraço tem o tamanho exato do meu abandono.

No silêncio eu só queria ouvir você se mover, mostrar que tudo continuava igual, era mais uma brincadeira, outro enigma, mais um jogo que deixava tudo diferente. Você cresceu e mudou diante dos meus olhos, sem notar, fiz o mesmo diante dos seus. Crescíamos a passos rápidos. Nós mudamos, aprendemos a viver...

O apartamento continuava ali e os pensamentos eram maiores e cada vez mais altos na minha cabeça. Bastou você se aproximar, largar as coisas no sofá, sorrir e falar "tudo vai ser igual, mesmo que mude". Um abraço e eu já não tinha medo de acreditar, de correr, de sorrir... it's in yours eyes where i find peace*.




* secondhand severage - awake
** imagem: http://www.flickr.com/photos/mariogogh

Meus velhos


As histórias de família retomam àqueles momentos de glória, que só se desvencilham do sofrimento a partir do momento em que ficam para trás. Quando se é novo, os contos de avós sempre fazem deles grandes heróis, ainda que seja de maneira singela e particular. Por outro lado, a essência da vida dessas pessoas só vai tomar forma para as crianças depois que elas crescem e aprendem a relacionar tudo o que têm com aquilo que já foi feito há tanto tempo.

Todo mundo sabe de alguém que tenha nascido em berço de ouro, com vida bem confortável desde que se têm notícias. Mas, particularmente, são poucos os casos que se ouve por aí de famílias que tenham vida fácil desde a geração dos avôs. Historicamente há muito que justifique isso, entretanto as mudanças na vida desses que hoje estão com mais de 60 anos não se resume ao contexto que os cercava. Parece que dedicação e caráter não foram as heranças mais marcantes que remanesceram, pois a própria valorização ficou perdida com o tempo.


Não é preciso ir longe para ver a 3ª idade sendo negligenciada, se os próprios filhos dela questionam sua criação e quanto mais que deixou de ser feito por eles. É incômodo presenciar o descaso com quem tem esperado tanto para colher bons frutos do seu esforço.



“Bom mesmo é ir à luta com determinação, abraçar a vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia, porque o mundo pertence a quem se atreve e a vida é ‘muito’ pra ser insignificante."
(Chaplin)





Para uma versão menos otimista sobre essa fase, o autor ideal e mais recomendável é Charles Bukowski.

*(não tenho os créditos da imagem. se conhecer, por favor, avise.)

Daquiali.

Tem dias em que tudo o que eu uso pra manter obscuro e pouco nítido, reverte no jogo que eu criei para satisfazer minhas poucas habilidades. E o abstrato em que me encontro tão confortável, cansa. Eu preciso do frívolo, pintar fora das linhas e sentir a vontade só por dividir uma mesa e alguns cigarros com aqueles que sabem o que é isso.

Eu olho para todos os cantos e os quadrados são metáforas daquilo que eu vejo preso em cada um. Cada um no seu quadrado. Nunca uma besteira fez tão sentido. Encho minha caixa de haicais que nunca serão lidos por ninguém. Porque só eu tenho a senha. Eu tenho a senha e a mania de guardar tudo o que eu faço só pra mim. Não é egoísmo, eu te digo. É besteira.

Em pouco eu percebo que há muito menos nas minhas necessidades básicas do cotidiano. Resumo tudo o que eu preciso em poucas pastas de música, e meu trabalho rende muito mais com um copo cheio de cafeína. Porque no fim das horas, eu sei que encontro o melhor. É sempre assim, o melhor por último, pra valer a pena.

Tem dias que são como hoje. O sol está lá fora e tudo seria demais. Mas aqui nessa sala meu estômago ameaça uma gastrite que beira o bizarro, e as conversas não são das melhores. Eu me empolgo agora pra despistar as promessas não cumpridas. Então, peço desculpa se eu me irrito fácil. Me desculpe se eu não compareço nos horários nem nos compromissos, é só que eu prefiro viver assim, sem muita dificuldade. Sem muitas regras ou vínculos fortes como antes.

Talvez porque eu saiba que eu encontro tudo no final. Um beijo. O seu.
Só o melhor. Lembra?


* foto de lilian splets

Long Nights

Eu queria que você atendesse o telefone pra te dizer brincando que eu enxergo seu coração, que eu vi que ele estava acanhado e recluso. Eu percebi seu incômodo ao longo do dia, mas não tive coragem ou oportunidade pra chegar e dizer que pode contar comigo. Eu entendo a sua dor. Talvez não a entenda completamente, mas me sinto confortável para entender e dizer que sim.

Eu me esforço ao máximo para brincar e sorrir quando está por perto, porque meu sorriso amassado e torto fica natural, fácil e descontrolado, nos aproximando com as piadas toscas e diversas. E eu te descubro mais em conversas sérias de palavras difíceis e de extrema importância.

Tudo que eu não consegui dizer porque você não atendeu o telefone, e nem chances de caixa postal eu tive. Tudo que eu não consegui por vergonha e um monte de outras coisas, te digo aqui, porque aqui é o meu lugar e com palavras escritas eu posso ser.

As noites são longas às vezes, eu sei, você sabe. Mas é rindo que ela ri de volta pra você. E com você e os outros, estou desamassando meu sorriso e descobrindo chaves para portas fechadas.

Quero acreditar mais nisso que te digo, que você tanto insiste em dizer. Quero não precisar que você atenda o telefone para te dizer que estou com você, porque se realmente estivesse, te daria um abraço e te diria sem precisar ligar.



30/03/08
*Ilustração de Marilyn Manson

Do 1º ao 2º

Se escondeu entre os lençóis como se aquele fosse o último dia, o dia do julgamento final, no qual precisasse apresentar todos os seus pecados à comissão julgadora do paraíso. A última noite não tinha sido um exemplo de boa conduta. Após algumas doses de vodka, muita música alta, luzes, carros, pessoas ... bom, depois disso tudo já não se lembrava de muitas coisas. As imagens se dispersavam em sua mente, sem ponto de congruência, sem ligação, sem esclarecimentos. E, de repente, a lembrança surgiu, ele.

Foi ele quem a mandou parar de beber, quem a buscou na pista quando todos desapareceram, quem a levou para casa, a colocou na cama e com um beijo se despediu. Um beijo, um esperado primeiro beijo, que ela, infelizmente, estava bêbada demais para comemorar ou retribuir. Maldição.

Levantou num piscar de olhos, colocou a primeira roupa que achou no armário. Se olhou no espelho e achou a combinação entre verde e laranja humilhante demais, trocou tudo pelo preto básico que realçava ainda mais suas olheiras. Não havia tempo para maquiagem, ela sabia que ele viajaria nas próximas horas, voltaria para o interior. Tênis, iogurte, cadê as chaves do carro? Ele ficou com o carro, corra.

Um metro e dois quarteirões depois e ela estava frente a frente com ele. Não esperava encontrá-lo colocando o lixo para fora, de bermuda e chinelo.

- Oi. É, to melhor sim. Viu, obrigada por ontem, nem tive tempo de agradecer. Agradeci? Não! Foi você quem me beijou. Como assim? Tem certeza? Me desculpa. Gostou? É, eu também. Sabe, não queria que fosse naquela situação, mas... é que eu gosto de você, me sinto bem com você. Juro, é sério! Ué, mas porque não me disse antes? Porque não tomou uma atitude? Pfff, coragem? Não vem com essa, todos usam a mesma desculpa. Claro, fiquei decepcionada. Como assim consertar?

Um não esperado segundo beijo.