Sabia que não era sozinho, mas sentia-se assim, como que perdido em uma vida da qual não fazia parte e não sabia como fugir. Aspirava mudanças de vontade própria que de um salto transformassem sua vida, passando de espectador a protagonista.
Acordava às seis horas todo dia, vestia sua roupa planejada de pessoa responsável e ia trabalhar. Cumpria seus deveres rotineiramente, salvo quando algo extraordinário do ofício o chamava que realizava da mesma forma.
Não era uma pessoa de pensamentos estranhos, pois até eles seguiam uma rotina equilibrada, tudo em sua vida tinha uma ordem.
Um dia no trajeto ao trabalho pensou em algo incomum, dentro de um ônibus abarrotado de gente, teve um lampejo na sua rotina, uma idéia lúcida e achou que tudo estava errado.
Ele, seu emprego, sua vida, aquele ônibus, as pessoas. Faltava lógica, emoção e ali dentro com as pessoas sem sentido ao seu lado de testemunhas, jurou a si que sua vida seria diferente. Deu o sinal e desceu feliz com sua decisão e animado com a possibilidade de mudança em sua vida.
No seu percurso ele tinha que atravessar uma passarela, que era ponto freqüente de assaltos, mas não ligava porque nunca tinha nada de valor consigo e também nunca fora assaltado.
Em um dia que ele desejou mudanças elas chegaram invadindo tudo e foi tomado de assalto por dois rapazes que, armados, exigiam dinheiro em troca de sua vida. Com toda franqueza disse que não tinha nada por três vezes e sem que pudesse dizer pela quarta levou um tiro na perna, na parte interna da coxa, e ficou lá agonizando, até que foi socorrido.
Com os pensamentos inquietos não entendia como um tiro na perna podia deixar alguém tão mal e na ambulância, a caminho do hospital, escutou frases semi-cortadas como: não vai... sangrou muito...safena...então fechou os olhos e percebeu que estava morto.
Acompanhou seu corpo até o hospital e viu o medico marcar a hora da morte oficial as 7:37 mas faltou coragem de ver qual o procedimento com um morto e deixou seu corpo e foi aguardar na sala de espera.
Graças à organização que manteve em vida, em sua carteira encontraram seus documentos e localizaram facilmente a família, que recebeu a notícia com uma tristeza comedida.
Sabia que os preparativos para um velório são sempre penosos e cansativos, então por um resto de vaidade humana foi ao seu emprego imaginando o quanto sentiriam falta de sua eficácia, mas ao chegar lá viu em sua mesa o estagiário que sem dificuldade nenhuma e com a mesma precisão, realizava as suas tarefas. Desapontado ele quis morrer, mas já estava morto desde as 7:37 daquele dia.
Sem saber o que fazer foi para seu velório e ficou lá, sentado, olhando para si no caixão. As mãos de quem não fez nada grandioso, rosto mediano desvalorizado pelos chumaços de algodão que o nariz, mesmo morto, insistia em repelir.
Por um momento sentiu-se como aquele algodão, achou que sua alma era tão estranha a seu corpo, que o mesmo encarregou-se de repelir. Uma alma tão fraca que nem seu corpo a quis.
Tinha um punhado de familiares chorando e outros tentando trazer lembranças do bom homem que foi em uma vida de cabresto. Deixou seu corpo lá e foi dar uma volta, tomar um ar ao menos, já que ninguém iria oferecer um café.
Ao passar pela porta viu dois companheiros de trabalho e curioso pela presença parou ao lado deles, que fatidicamente, disseram as palavras que mudariam sua vida e sua morte: “Coitado, levou uma vida besta e terminou com uma morte besta”.
Ele saiu pasmo com a revelação tão simplória e tomando ar, percebeu que viveu morto. Voltou ao caixão, olhou para si e despediu-se daquele corpo. A vida fora para os outros, então, a morte haveria de ser sua e saiu determinado a viver sua morte como nunca viveu sua vida.