Achavam que me conheciam ao me dar condolências, mas se de fato soubessem quem eu realmente era não o fariam.
Nunca me importei com formalidades e convenções e ele também nunca ligou para nada disso.
A nossa relação era singular, nem sempre éramos verdadeiros um com o outro, mas isso nunca nos distanciou. Assim era a nossa forma de respeitar o espaço alheio, uma mistura de respeito, carinho e omissão.
Muitos o achavam esquisito e quando ele reclamava disso eu sempre dizia que considerasse como um elogio e acabávamos concordando que pessoas normais e previsíveis nos cansavam demais.
Ele me irritava porque nunca cedia em discussões, sempre me desafiava e passávamos horas assim.
Em uma dessas longas conversas eu disse que queria que tocassem flautas no meu enterro e ele me achou mórbida e retrucou dizendo que não faria diferença alguma, porque depois de morto não se ouve, não se vê e nem se sente nada e para garantir que essa ausência de sensações se concretizasse ele queria ser cremado.
Sempre achei a idéia de cremação pouco romântica, não há tumbas, não há corpo para posteridade, não há nada, só o que resta é um pote com cinzas, “oras se é isso o que deseja que limpe cinzeiros” foi o que eu disse a ele.
Naquela falação eu prometi que o cremaria e ele que eu teria as minhas flautas.
Pois bem, e agora, aqui nesse sofá, eu, como já fiz antes, menti pra ele e não cumpri minha promessa.Eu me levantara, errava pelo apartamento com alma de incendiário; infelizmente nunca lhe toquei fogo.
Ele foi enterrado e eu não terei minhas flautas, mentirosos que somos.