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quinta-feira, 4 de outubro de 2007



E após oito edições, Susi foi para a biblioteca. Folheando livros, entre brumas e dados, encontrou Sartre:

"Eu me levantara, errava pelo apartamento com alma de incendiário; infelizmente nunca lhe toquei fogo (...)"

Na explosão de uma idéia nada original, o desafio foi lançado. Serão 5 textos. Temas e abordagens diferentes, contendo obrigatoriamente a mesma frase.

Enquanto Susi espera mais dez dias pra completar uma dezena, divirta-se com os resultados.

beijosdeixacomentário.
=]

Easy target

Olha aqui onde eu estou durante todo esse tempo que você fica acertando sua cabeça na parede. Vejo tudo escuro no quarto e quase não encontro seus olhos. Eles apagaram junto com tudo aquilo que morreu nas nossas palavras. E as despedidas pareciam novos recomeços. Sentia suas mãos nas minhas e tinha a certeza de que quando chegasse a hora, você sentaria comigo e perderia aquele avião. Mas, você foi, foi e me levou junto. Deixou só esse pedaço de carne, me deixou errando sozinha pelo mundo, sem os seus olhos brilhando dentro do quarto. Você levou com você a minha paz.

Nesses dias eu me levantava, errava pelo apartamento com alma de incendiário; infelizmente nunca lhe toquei fogo. Meu cérebro desfeito naquela fumaça densa. Suas mãos pareciam mais perto quando eu deitava no sofá a procura daquelas lembranças. Minha alma queimava e tudo nesse apartamento era frio. As lembranças são frias quando a possibilidade é nula. Não encontrava nenhum espaço para me esconder de mim, não havia lugar para me esconder de você, você que trocou todas as peças e me emprestou aquelas certezas. Conto minhas cicatrizes feliz, conto meu passado pulando pelas contas que você deixou pelo caminho, agora eu preciso enfrentar o mundo lá fora sem os seus olhos.

Continuei meus dias sem nenhum plano imediato, meus pensamentos despregados te seguindo por cada país, meus ouvidos procurando cada um dos seus sussurros. A cegueira e a surdez me desesperam. Aos poucos volto a vida. Procuro um outro apartamento para te apagar dos cantos, um outro emprego seguindo pela última vez seu conselho, e ainda procuro quem sabe um novo amor. Algum motivo para sorrir ou chorar. Alguma coisa para enfiar nesse lugar do qual você tirou meu coração.

Descobri porque não te encontro nesse escuro. Preciso queimar todas essas velas. Olhe nos meus olhos, me olhe e note que eu já vi tudo isso antes. Eu vi tudo isso e recomecei. Mas, eu não posso recomeçar até ver você terminar. Acredito nos seus olhos. Acreditei. Agora, não sei onde começa o fim do fim ou o momento onde poderemos recomeçar. Carrega com você a minha lembrança porque eu vou guardar a sua enquanto ando em círculos. Às vezes me sinto sem sorte, ou simplesmente eu sinta demais.

Espere.

Vou escrever o fim do fim e continuar andando em círculos. A última peça desse quebra-cabeça ri da minha cara. Essa vida sem final ri da minha cara, enquanto eu continuo sozinha e sou esse alvo fácil. Sem você, eu mastigo as palavras. Sem você, nenhuma bebida jamais teve o mesmo gosto. Sem você, segui meu caminho trocando passos com a inércia. Sem você, eu sou um alvo fácil.

Não te queimo

Achavam que me conheciam ao me dar condolências, mas se de fato soubessem quem eu realmente era não o fariam.

Nunca me importei com formalidades e convenções e ele também nunca ligou para nada disso.

A nossa relação era singular, nem sempre éramos verdadeiros um com o outro, mas isso nunca nos distanciou. Assim era a nossa forma de respeitar o espaço alheio, uma mistura de respeito, carinho e omissão.

Muitos o achavam esquisito e quando ele reclamava disso eu sempre dizia que considerasse como um elogio e acabávamos concordando que pessoas normais e previsíveis nos cansavam demais.

Ele me irritava porque nunca cedia em discussões, sempre me desafiava e passávamos horas assim.

Em uma dessas longas conversas eu disse que queria que tocassem flautas no meu enterro e ele me achou mórbida e retrucou dizendo que não faria diferença alguma, porque depois de morto não se ouve, não se vê e nem se sente nada e para garantir que essa ausência de sensações se concretizasse ele queria ser cremado.

Sempre achei a idéia de cremação pouco romântica, não há tumbas, não há corpo para posteridade, não há nada, só o que resta é um pote com cinzas, “oras se é isso o que deseja que limpe cinzeiros” foi o que eu disse a ele.

Naquela falação eu prometi que o cremaria e ele que eu teria as minhas flautas.

Pois bem, e agora, aqui nesse sofá, eu, como já fiz antes, menti pra ele e não cumpri minha promessa.Eu me levantara, errava pelo apartamento com alma de incendiário; infelizmente nunca lhe toquei fogo.

Ele foi enterrado e eu não terei minhas flautas, mentirosos que somos.

Amargo Amor


E o amor sempre foi um obstáculo, uma fase que eu preferia pular em meus relacionamentos. Pois naquela única vez que havia experimentado dessa dor, desisti de senti-la. Na realidade, não diria desistir, foi uma luta travada com o coração, batalha que aconteceu em minha mente. Durante meses perdi minha identidade, não sabia quando ainda era eu e ela ou só eu. Esquece-la foi difícil, e nossas imagens de momentos felizes espalhadas pela casa não ajudavam nessa árdua tarefa.

Da janela costumava procurá-la. Entrava às 8h no trabalho, durante três meses olha-la atravessando a rua e entrando na cafeteria fez parte de minha rotina. Quando voltava meu olhar para dentro, era ela quem me seguia nas fotos pela casa.

Fazia horas que meus olhos não fechavam e ali, perdido na cama, o cheiro dela se pronunciava cada vez mais forte. Os lençóis ainda guardavam seu perfume, e me embriagavam, trazendo imagens de seu rosto em minha mente. Por vezes ainda fuçava naquela caixa, onde guardei todas suas fotos após ter recolhido lembranças da casa. Durante a noite mal dormida eu me levantara, errava pelo apartamento com alma de incendiário, infelizmente nunca lhe toquei fogo, nunca fui suficientemente corajoso. Ela já não fazia mais parte do meu presente, ela desapareceu de meu coração, de minha cabeça, mas ainda assombrava minha alma com marcas do nosso passado.

Depois dela, esqueci o amor. E a cada semana fazia outras errarem, compartilhando um pouco de minha dor. Elas nunca entendiam, e eu as culpava por o que ela um dia me fez. A cada noite meu coração parecia se reconstruir, antes que o adeus da madrugada o lembrasse de que sentimentos falsos não colocam peças no lugar. Felizmente, o quebra-cabeça em meu peito não se denunciava em meus sorrisos. E elas continuavam a acreditar. Então eu desaparecia, do mesmo modo como surgia, as querendo mais.

Sempre querendo-te, amor.

Temor a posto

Percebi que não tinha muito quando me tiraram aquele pouco e eu demorei a digerir tal perda. Vieram aqui para sugar o materialismo da minha vida, mas levaram a segurança que eu julgava ter, o conforto que somente aqui eu havia sido capaz de estabelecer e a suposta tranqüilidade de quem pensa determinar a própria sorte. Não bateram na porta e nem pediram licença para vasculhar este cômodo, agora tão meu quanto de qualquer desconhecido. Ignoro quem seja o invasor da minha privacidade e se ele tenciona voltar. No entanto, a falta dessas informações não impediria uma nova visita e se a desconfiança foi agregada ao lar, doce lar, a minha intolerância contrariada o aguarda no sofá com uma faca em punhos.

A serenidade só precisava de um estímulo para dar lugar ao aborrecimento: presenciar o pânico dos que habitualmente me tranqüilizariam ao ver nosso equilíbrio às avessas. Desnorteada, era muito mais difícil entender a bagunça que fizeram em mim e quantificar o dano pareceu mera questão burocrática, enquanto me horrorizava com a escolha dos objetos bruscamente deslocados.
Como aquilo deveria me atingir? Pela perda do único material de grande valor que possuía, ou pela sensação de que eu fazia dele mais que material? De qualquer forma, o removiam de meu poder por razões financeiras ou pessoais sem o meu consentimento, com a frieza de quem sabe que atordoa e por isso o faz.

Deitar na minha cama não era reconfortante, pois me limitava a uma relação de ‘pertences’ - ainda que fosse só o do espaço. Preocupava-me o apego a ele que pudesse ser interferido posteriormente por terceiros; tiraram-me o controle do espaço como se fosse algo que eu não devesse possuir. Receosa, abri mão dele e fui ao local mais público que encontrei em casa: deitei no tapete da sala onde conseguia encarar a porta de entrada para esperar uma explicação lúcida que poderia chegar enquanto todos sonhavam.

Permanecia com a faca em punhos para não espantar a fúria e atrair novamente o comodismo. Ela ainda estava comigo e não me deixava adormecer. Naquela embriaguez de cansaço, incertezas e medo, eu pensava em abolir tudo o que pudesse ser tirado de mim só para afirmar que tinha o domínio das minhas perdas, em destruir o que chamava de meu. Encolerizava de maneira absurda estar assim tão vulnerável. Eu me levantara, errava pelo apartamento com alma de incendiária; infelizmente nunca lhe toquei fogo. Caminhava impaciente na tentativa de me desprender daquele lugar.

Em algum momento, cerrei os olhos e imaginei estar em um ambiente aberto sem portas ou trancas. Acordei de súbito sentada no tapete da sala, certifiquei-me de que a necessária chave estava virada e voltei a segurar a faca.

Acomodações

Pensei um dia em começar dizendo sobre o medo que o vento trouxe. E trouxe por eu temê-lo. Já longe do tempo, percebi do que era feito. A verdade era que o vento traz cantiga e não amedronta mais rapaz de idade maior.

Mas ainda assim era pouco pra dizer o que queria. Dividir o tempo não deveria ser complicado e a distância quase sempre atrapalha qualquer contato. Eu só pensava em como a música de passos no asfalto iria cobrir o que deixei mal resolvido, mas a cedilha me distraiu quando se intrometeu na "çaudade".

O assoalho range como se chorasse a falta do completo anterior, e cada passo pode trazer uma nova descoberta no vazio dos cantos. As constelações de nome chamavam por mim sem usar o meu. Só o brilho era capaz de reluzir no vidro o que o sol foi incapaz de aquecer. Só eu conseguia roer as unhas enquanto esperava a ansiedade dar-se por vencida.

E eu insistia em viver as mesmas coisas, construía tudo o que me cabia por ter a mania de sonhar. Me enlouquecia por perceber que era quase tudo em vão, e segurava pra não derramar o que as lágrimas suplicavam. Sentia, mais uma vez, a estranha falta de destruir o que me causava potência.

Então, eu me levantara, errava pelo apartamento com alma de incendiário; infelizmente nunca lhe taquei fogo. Os sonhos acabariam por atrapalhar o que a vida havia reservado pra mim. Mas as respostas demoravam mais do que deveriam. E num súbito momento de apreço e amor pelo que era, dava-me ao luxo de sentir pena por viver assim.

No fim, a idéia fora consumida. No fim, já nem sabia o que dizer. já não procurava o que pudesse fazer sentido. Só esperava. Diante a tanta fumaça e atrás de toda fraqueza. Era fogo e estalo de ossos. Era a utopia garantida na saída mais fácil. Era mentira. A espera do vento para se dissipar e cantar no meu ouvido que... era apenas o começo. A chance nova de falar, não querer.

De forte chama, as estrelas mastigaram minhas preocupações. E lancei a vida num sopro, pra direção qualquer. Feliz com a leiga decisão, decidi não amolar as paredes pela dúvida do meu ser. A dança se estenderá pela sorte de seguir o que o incerto há de propor. Talvez agora um itinerário menos duvidoso. Talvez menos masoquista. Mas apenas talvez.