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quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Temor a posto

Percebi que não tinha muito quando me tiraram aquele pouco e eu demorei a digerir tal perda. Vieram aqui para sugar o materialismo da minha vida, mas levaram a segurança que eu julgava ter, o conforto que somente aqui eu havia sido capaz de estabelecer e a suposta tranqüilidade de quem pensa determinar a própria sorte. Não bateram na porta e nem pediram licença para vasculhar este cômodo, agora tão meu quanto de qualquer desconhecido. Ignoro quem seja o invasor da minha privacidade e se ele tenciona voltar. No entanto, a falta dessas informações não impediria uma nova visita e se a desconfiança foi agregada ao lar, doce lar, a minha intolerância contrariada o aguarda no sofá com uma faca em punhos.

A serenidade só precisava de um estímulo para dar lugar ao aborrecimento: presenciar o pânico dos que habitualmente me tranqüilizariam ao ver nosso equilíbrio às avessas. Desnorteada, era muito mais difícil entender a bagunça que fizeram em mim e quantificar o dano pareceu mera questão burocrática, enquanto me horrorizava com a escolha dos objetos bruscamente deslocados.
Como aquilo deveria me atingir? Pela perda do único material de grande valor que possuía, ou pela sensação de que eu fazia dele mais que material? De qualquer forma, o removiam de meu poder por razões financeiras ou pessoais sem o meu consentimento, com a frieza de quem sabe que atordoa e por isso o faz.

Deitar na minha cama não era reconfortante, pois me limitava a uma relação de ‘pertences’ - ainda que fosse só o do espaço. Preocupava-me o apego a ele que pudesse ser interferido posteriormente por terceiros; tiraram-me o controle do espaço como se fosse algo que eu não devesse possuir. Receosa, abri mão dele e fui ao local mais público que encontrei em casa: deitei no tapete da sala onde conseguia encarar a porta de entrada para esperar uma explicação lúcida que poderia chegar enquanto todos sonhavam.

Permanecia com a faca em punhos para não espantar a fúria e atrair novamente o comodismo. Ela ainda estava comigo e não me deixava adormecer. Naquela embriaguez de cansaço, incertezas e medo, eu pensava em abolir tudo o que pudesse ser tirado de mim só para afirmar que tinha o domínio das minhas perdas, em destruir o que chamava de meu. Encolerizava de maneira absurda estar assim tão vulnerável. Eu me levantara, errava pelo apartamento com alma de incendiária; infelizmente nunca lhe toquei fogo. Caminhava impaciente na tentativa de me desprender daquele lugar.

Em algum momento, cerrei os olhos e imaginei estar em um ambiente aberto sem portas ou trancas. Acordei de súbito sentada no tapete da sala, certifiquei-me de que a necessária chave estava virada e voltei a segurar a faca.

3 comentários:

ligiazm disse...

eu fico tão feliz por estar entendendo seus textos agora :)

Ogami disse...

Igualitá..Fraternidad.. qual era o outro mesmo?


Ahh já sei.. um quadrado de chocolate.

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Não deva nada a um cigano que bebe conhaque, um dia ele pode parar de beber, virar para você e dizer: Hey! Psiu...oh moça.. cadê meu chocolate?

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Understand honey?

Yuri Kiddo disse...

ótimo!!! Simplesmente Ótimo. O texto que mais gostei seu e até agora na 9ª edição.