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domingo, 29 de junho de 2008

Dos pés a cabeça



No primeiro dia do ano acordou com tudo igual ao seu redor, as paredes desbotadas, a rachadura do teto e na cama a mesma mulher há quatro anos. Tudo morno, cinza e quase morto.

A parte mais animada do corpo eram os pés por causa das frieiras, que agora pareciam ter mais vida do que ele mesmo. Coçavam sem parar e despertavam o resto do corpo. Guerreiras.

Elas venceram. Levantou-se e foi ver a corrida na Paulista, não tinha o que fazer e nem pressa com nada. Caminhou e elas se acalmaram com o suor e a umidade, mas ele não.

Lá todos corriam para vencer e chegar a algum lugar. Ele era um intruso. Não corria e queria dormir. Pensou em voltar, mas essa hipótese causou uma vontade ridícula de correr.

As frieiras agora dominavam os pés, que cederam com animosidade para correr, mas ele não permitiu, apenas andou um pouco mais rápido. Não tinha para onde ir e nem queria voltar.

Foi caminhando em um ritmo mais acelerado e ficando cada vez mais distante das paredes do apartamento e da rachadura no teto. Longe da sensação de toda manhã. Acordar e sentir o peso de ser o que os outros não esperavam. Mentiu por tanto tempo que até acreditou que queria ser alguém na vida de alguém.

Ele não queria a estranha que acordava ao seu lado há quatro anos. Nunca quis nada na vida, nem mesmo a vida. Estava ali porque nasceu e só. Não teve opção e se talvez tivesse escolheria a mais cômoda.

Percebeu que estava correndo. Parou. Olhou ao redor e se deu conta que estava cansado. Entrou em uma farmácia e saiu com uma sacolinha nas mãos.

Voltou para casa. A mulher estava na frente da televisão bocejando e disse – “Fiz café”, ele balançou a cabeça e foi para o quarto. Tirou o sapato e olhou para eles e depois elas.

Malditas. Abriu a sacola, pegou a pomada e leu a bula “Indicado para pé de atleta e infecções cutâneas”. Não podia ter pés que o fizessem um atleta e uma louca vontade de correr para longe de tudo o que era cômodo e confortável.

Os pés se conformaram, assim como ele. Nunca mais esboçaram nenhum ímpeto aventureiro de sair por aí. Só ficou a lembrança de como quase perdeu o nada que era sua vida.



Imagem: Da cabeça aos pés - Por Paula M. Leite do Canto - 1999

Um comentário:

Unknown disse...

Nossa ... eu nem tenho frieiras e pude sentir a coçeira rsrsrs

Muito bom !!!