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quinta-feira, 2 de agosto de 2007

A parte do que partiu

Tanto foi o barulho produzido no começo, que agora nada mais se ouvia.
As taças vazias no canto da mesa e os corpos jogados, um em cada sofá, denunciavam a noite anterior como a suspeita de que o silêncio era o bastante.

Talvez você pense que não deveria ser assim, eles eram jovens e bonitos, se gostavam demais e há tempos atrás via-se a casa cheia. Todos os cômodos repletos de amigos, bons risos, a música alta, os abraços, beijos e toda a demonstração de carinho que era distribuída gratuitamente.
Na cama, os lençóis desarrumados e iluminados pelo sol da manhã (que atravessava as pequenas frestas da persiana da janela), acusavam a noite anterior, em que o sorriso e a sensação prazerosa do sexo quase animal, procedido do orgasmo espetacular, havia acontecido ali mesmo.

Os dias eram mais leves e as obrigações menos penosas quando se amanhecia e ela sentia o cheiro dele no travesseiro. Às vezes, quando percebia, havia até se atrasado um pouquinho do horário de sair de casa para o trabalho. Mas encontrava valor nos minutos gastos ali. Ele já tinha ido mais cedo e, provavelmente, teria mantido toda cautela para não acordá-la, como de costume. O cuidado do bilhete também não fora esquecido e, como poderia esperar, arrancou-lhe mais um sorriso.

O dia terminava e o reencontro era realizado em clima de comemoração. Depois de todas as mensagens sms, os e-mails e os poucos telefonemas trocados, quando os olhos alcançavam um ao outro na distância de poucos metros, centímetros, milímetros, o coração pulava pra fora e era inevitável não ficarem felizes em vivenciar a cena tão esperada e imaginada por todas aquelas horas.
A noite certamente acabaria tão bem quanto a passada, o vinho viria junto com as juras e os planos. Seria tudo parte de uma conspiração do universo bem sucedida. O universo deles, é claro.


E assim foi. Aliás, foram muitos meses e até anos de união.
Mas no dia em que os corpos repousavam em sofás distintos, as coisas não eram assim havia um tempo. Ele conseguira uma promoção. Ela, mais tempo para cuidar da casa, deles e da vida alheia. Não que o interesse fosse grande, mas era impossível não participar do ciclo vicioso de ter muito tempo de sobra e pouco a se fazer.
Os lençóis, que mesmo sem bocas eram grandes fofoqueiros, continuavam relatando a noite passada, porém nem sempre estavam tão jogados ou
bagunçados, aprenderam a ficar comportados, às vezes intactos, expondo o formato do corpo que ali estava deitado. Deitado, nada mais.

Os dias então pareciam insossos, mergulhados nos afazeres do cotidiano, era difícil ter alguma idéia brilhante ou algo que a fizesse sentir ânimo. Mas ele lhe era suficiente (ao menos deveria ser), ajeitava tudo, limpava, escrevia alguns cartões, acendia velas e o esperava para o jantar.
Ele se atrasava algumas vezes, comia pouco, assim como lhe dava atenção. Já estava na cama de novo. Ela, na cozinha, lavava a louça junto às próprias lágrimas.

O próximo dia estava chegando e logo completariam 4 anos. Era bastante coisa para ambos. Afinal, nem ele, nem ela acreditariam que a relação duraria tanto. Mas estavam juntos, deveria valer.
No dia exato da comemoração, as coisas não mudaram muito, ele saiu para trabalhar e mal beijou a testa dela. Ela acordou e ainda sentia falta de ânimo, ou qualquer coisa muito mais densa que a fazia sentir assim. Apesar de abalada resolveu consigo que sair de casa um pouco poderia lhe trazer algumas sensações até então não vivenciadas. Mas o dia não ajudou muito mesmo.

Na volta de seu passeio arrumou em casa uma pequena surpresa para ele, por mais que acreditasse que tinha esquecido. Ele demorou um pouco mais desta vez, mas chegou. Parecia estar cansado, mas, realmente, também pareceu ter se alegrado quando a viu na sala à sua espera.

Para sua surpresa, ele trouxe um buquê com algumas rosas. E foi impossível deixar de reparar no brilho em que o olhar dela alcançou. O contentamento era quase palpável. E como se não houvesse certo ou errado, tudo o que aconteceu era apenas porque deveria acontecer.
O tempo não fugiu da rega e fez questão de dissolvê-lo. De novo o tempo. De novo o vinho, que agora somente vinha para o prazer momentâneo de tentar esquecer.

Era então o sofá ocupado por apenas um. Um por cada. As taças vazias, os olhares vagos. Amanhã, quem sair por último apaga a luz e fecha a porta, larga todo o peso e tenta quebrar o silêncio. Mesmo que o último barulho seja o ranger da porta.

6 comentários:

ligiazm disse...

triste e perfeito ao mesmo tempo.
a parte do buquê foi tão foda! :D

Ogami disse...

'To write a text like this you must be a good-hearted guy.. haua"
Tirando meu inglês provinciano, sua mulher deve comemorar, she must be a lucky girl...
Keep writing mate...

Milla disse...

Confesso que fiquei melancólica com o texto...
É tão minucioso tudo isso, sei lá tem uma sensibilidade tão latente que parece que algo vai quebrar.
Muito bom Bruno.

Toad - Matheus H. disse...

Woooooooww!!!

Nossa!!
oO

Muito bem escrito!!
'Profundo' me soa superficial.. Vou tentar achar outro adjetivo...
Em alguns meses...

Abraços!
Toad

Lilian Spletstoser disse...

esse é um dos textos mais profundos que você já escreveu, bruno. não dá pra não ler até o fim!
vou falar igual professora de pré agora, "continue assim!".
amo.
=***

Roberta disse...

Depois de um tempo do convite, finalmente criei vergonha na cara e vim visitar você aqui.
Confesso que estou impressionada com seus textos (e não encare isso como se eu esperasse pouco de você)!
Esse último é especialmente bonito. De dar dor no coração, medo do futuro e talvez até do presente.
Enfim, parabéns mocinho! Ganhou uma leitora assídua!
Beijão
ps. a vontade de eu voltar a ter um blog aumentou!