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domingo, 4 de maio de 2008

pretérito perfeito

Sua imaginação sempre a levou onde gostaria de ir e montou as cenas em que gostaria de atuar. Interpretava a protagonista de um grande roteiro escrito em sua mente, criava lugares pelos quais rodava o mundo sem destino certo, sem futuro previsível. Fazia da vida conto-de-fadas, mas não se importava com o final feliz. O final viria depois, aproveitaria antes seu presente. A imaginação a levava até a Inglaterra, onde andava pelos campos gramados de Hampshire, com a seda de seu vestido a voar conforme o vento a alcançava; por vezes voltava no tempo e visitava a França do século XVI, se perdia em antigas ruínas enquanto ouvia sua trilha sonora previamente montada nos fones de ouvido; ou partia rumo à lugares desconhecidos: perdia-se entre cerejeiras orientais e procurava beleza em rostos de pó e carmim, vagava por vilas espanholas com o barrado do vestido vermelho a roçar o chão de areia; buscava novos olhos e outras mãos como a cigana romena; vivia e morria a cada raiar do sol.

De fantasia era feita sua realidade. Enquanto sonhava com o irreal espantava os pesadelos de sua vida. Fazia do insuportável mera obrigação, o viver era o detalhe que incomoda mas autoriza a satisfação. Em seu mundo particular criava cenários, montava diálogos e escolhia os personagens. Seu papel, a garota, era sempre o mesmo, sempre a mesma. Inocente, ingênua, fraca. Tinha a nítida impressão de que não pertencia ao mundo real. Seu romantismo exagerado era ridicularizado, nascera mulher de um século errado.

- O fardo de abrir os olhos me tortura. Nos minutos em que encaro a realidade me perco pelas vielas do real. Não sei andar pelo asfalto, desconheço o som da cidade, não respiro o mesmo ar dos que cruzam meus passos. Minha estrada é outra. Em algum ponto de minha vida fiz a escolha errada, segui pelo caminho contrário à sociedade. O escuro não me pareceu mais atraente, o desolado, o inconseqüente. Optei pelo meu vazio, meu claro vazio, este em que eu posso escrever e dar o rumo que seguirei. Pois só desse modo controlo minhas pegadas e prevejo os acontecimentos. Todos eles criados momentaneamente. Eu decido o trilhar. Nas minhas histórias posso não saber o passo a dar, mas em minha realidade, tudo o que encontrar, levará ao o meu fim. Adianto-o: aqui o tens.

Vagando pela Irlanda com os pés na areia de Dingle, enquanto o sol de inverno brilhava em seus olhos, deu seu último suspiro real. Continuaria a habitar outros mundos, não mais aquele ao qual não pertencia.

Um comentário:

Milla disse...

Há quem consiga imaginar tanto e viver o que não faz parte.

Ainda prefiro a dor e o cinza de uma vida verdadeira.

=**