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quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Respeitável público

Uma curta viagem e a disforme variedade comercial que só o transporte público poderia oferecer: canetas, chaveiros, pilhas, amendoins, salgadinhos, chicletes, balas, água, refrigerante, cerveja, esfomeados e religiosos. Tudo à venda. Como se fosse a 25 de Março com uma pitada de Praça da Sé sobre trilhos.

Ao fechar das portas iniciava-se a corrida publicitária dos criativos vendedores ambulantes que disputavam a atenção dos passageiros com os pedintes de discursos nem tão originais, mas comoventes. Uma senhora sentada ao meu lado expressou a indecisão sobre o que faria com sua moeda de um real. Poderia dá-la a uma mãe solteira de três crianças pequenas (das quais duas a acompanhavam) e cujo pai havia morrido há dois meses, vítima de bala perdida, ou então, poderia comprar a garrafa de água do carismático rapaz que prometia para todas solteiras que a bebessem uma pele incrível e um noivo em prazo quase imediato. Convencida de que o noivo poderia esperar, a senhora decidiu contribuir com a escassa renda da mãe solteira. Naquele calor insuportável que fazia até eu me senti impulsionada a comprar a tal agüinha milagrosa, mas o lucro do negociante com certeza não era decorrente da temperatura.

As crianças se esbaldavam com salgadinhos fedorentos e balas molengas para depois correrem pelo vagão, segurando-se nas pernas mais próximas quando necessário. Seus pais provavelmente dormiam ou se entretinham com algum discurso vendável e não davam por conta do sumiço dos pequenos. Uns poucos tentavam se concentrar em outras atividades independentes das atrações ferroviárias até serem diretamente abordados por alguma delas, o que não demorava uma página de jornal, nem uma música inteira.

Certamente o espetáculo que mais cativa o público nesses trajetos é o dos religiosos. Muitíssimo bem elaborado para seu curto tempo de exposição, ele conta com todos os recursos possíveis para chamar atenção do receptor, introduzi-lo inteiramente no assunto a ponto de emocionar com tamanha assimilação e, tão logo, persuadi-lo. Sim, Jesus ama a ti e tu precisas dele (refrão 15x).

Primeiramente há o momento da densa pregação, em que as pessoas são apresentadas como meras pecadoras, inadmissíveis no reino dos céus. Conquistado o sentimento generalizado de culpa, o enviado aponta a solução. Bem simples, pois, uma vez que o Senhor tenha um bom coração, o perdão é sempre alcançável para os que realmente querem se redimir. A desgraça é sentenciada somente para os que não querem, afinal é aqui que entra a música de louvor.

O trem em coro estava contagiado pela canção que selava a libertação de suas almas; a luz do sol de fim de tarde que adentrava pelas janelas, agora com mais intensidade, não estava ali sem razão; a paisagem mais verde que se distanciava da cidade perversa também colaborava com a ocasião sagrada. Ela havia sido sabiamente planejada do começo ao fim e ainda se favorecia por fatores determinantes como um cenário. Sensacional!

Só senti falta dos fogos de artifícios, mas ao fim do processo todos bateram palmas satisfeitos. Já poderiam seguir seus caminhos em paz agora que estavam revigorados pelo evento de salvação, em cartaz nos principais trens de São Paulo.

4 comentários:

Yuri Kiddo disse...

esse é o nosso Brasil. Dá vontade de empurrar pro próximo cara-de-bocó que passar e dizer "nosso não, teu! te vira"

Lígia Ruy disse...

Uma vez eu estava no metrô e entrou um cara com o discurso básico de ex-presidiário, e disse que cantaria uma música. Ele ficou lá na frente e começou a cantar um pagode, que, segundo ele, era de sua própria autoria.Todo mundo prestou atenção, e nossa! como ele era desafinado!! Jeito estranho de ganhar a vida... mas quem sou eu pra julgar, né.
Mas que ele era desafinado, isso ele era.

texto do jeito que eu gosto.

beijos Ana

ligiazm disse...

meu irmão uma vez ouviu no trem: "Olha rapaz, que legal!"
todo mundo olhou pro cara que gritou isso no mesmo instante.
e ele: "Isqueiro ou caneta é só um real!"
ahahahahahahahahahaha

Acacia disse...

Imagine se isso tb vira moda no metrô, hein...

Mto legal, Ana!

=***