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segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Sobre cantos

Os cantos caracterizam. Mais do que a altura, o comprimento, a espessura, a textura, o material, a cor ou o odor, os cantos delimitam um tempo: A embalagem ganha seu fim em cada contorno: ali ela acaba para recomeçar mais adiante; A frase tem sua pausa a cada pontuação, que em seu formato já representa uma linearidade interrompida; Pessoas têm suas diversas curvas estabelecidas pelo que pensam, sentem ou fazem em diferentes momentos de suas vidas.

Não mero ponto convergente que também diverge, o canto sintetiza todo o processo de transição considerado desinteressante. O miolo do pão francês, por melhor que seja, nada seria se não existisse a superfície torrada. É ela que caracteriza a receita; o miolo é uma conseqüência. Até mesmo porque se não houvesse os cantos da superfície a serem tostados, o miolo é que seria e, nesse caso, perderia suas atribuições.

Mas ninguém se importa com a história da preparação do pão comprado, todos identificam o detalhe mais relevante na estética dos cantos dele. Assim também acontece na escolha de frutas em uma feira ou na compra de um carro usado. É como se eles narrassem o trajeto de determinado material apenas denunciando uma possível deformação.


Hoje em dia atenuam-se os cantos das pessoas. Na intenção de omitir o tempo que os formou, simplesmente são tirados de seu devido lugar de maneira indigna. Eles representam um certo período que não pode ser anulado e nem o seria se fosse uma questão de textura. Mas o fato é que cantos são mais maleáveis do que qualquer outra característica. Aliás, é perceptível até um certo desrespeito com alguns que pareciam imutáveis, como o da melancia que acatou a inovação de ter só quatro em lugar de seus inúmeros naquele tradicional formato esférico. Enfim, delírio cubista dos chineses.

Não sei exatamente até quando é aceitável a tolerância com a alteração dos cantos já acomodados. Percebo que isso pode desencadear uma reação incontrolável de mudanças conceituais, afinal, mal conseguimos estabelecer alguma definição sobre os cantos e agora já se pensa em generalizá-los.
Evito a homogeneização que se dá pelos arredondamentos insistindo em permanecer nestas quinas avessas.

7 comentários:

Milla disse...

Nossa Nana.
Nunca vi nada demais em cantos mas vc conseguiu prender minha atenção com esses seus "cantos".
Adorei o lance dos pães e a citação das melancias quadradas como um "delírio cubista dos chineses"
Hahaha ótimo!!
Muito bom.
Beijo

De Lancret disse...

ahá! e sabe que até a metade do texto eu ainda tava pensando aonde que se encaixavam as tais pessoas cantando!

e então eu percebi que eram outros tipos de cantos!

quanta imaginação ana! cantos! que pessoa criativa, céus!

=**

Toad - Matheus H. disse...

Eu acredito que a analogia aos cantos foi feita de forma bem interessante.
Eu sempre preferi o miolo.
Talvez um dia eu me preocupei demais com a casca do meu pão. É fácil se preocupar com ela. Tá na vitrine.
Claro que é importante, mas percebi q não mais importante que um delicioso miolo, molhado em manteiga e leite.
E assim, a casca passa a ser apenas um complemento!
Bjs!
Toad

Elsa Villon disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Elsa Villon disse...

Eu gosto do miolo, mas nunca parei para pensar que fosse conseqüência da casca assada em cima. Muito bom o seu texto.

Ninguém repara muito nos cantos. E alguns, juntam um pouco de pó por essa razão.

Anônimo disse...

elementos parnasianos, metáforas culinárias, anulação de características singulares (vc denunciou na ultima frase).

o mundo é generalizado culpa da corrida canibal? ser saudosista é bacana, mas encarar a tendência é o mais corajoso. não é o fim das particularidades... e sim o aumento e convivio muitas vezes forçado com mais delas. vide clocalismo...
perdi ou deixei de lado alguma coisa?

ps: melhor melancias quadradas do que geladeiras redondas.

dahora.

Yuri Kiddo disse...

Aninha, que belo texto!
mostrou uma leveza que eu sinto quando te olho.

O texto parece ter sido feito como um bolo ou algo do tipo, e você usou os ingredientes certos. HÁ!

Parabéns, adorei.
E finalizo como o "rei da estrada" aí em cima:

dahora.